30.11.14

DESVERSOS

3.

Sobre este caso não há a mínima  dúvida
a imprensa como sempre é que empolou
sua excelência agiu correctamente
o piso é de outrem embora seu familiar
ninguém está livre de uma coincidência
quem chama a atenção das redacções?

                                                     Lisboa
                                                                  12-VII-95

Fernando Assis Pacheco

RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro 2003

26.11.14

Presunção de inocência

O que se diz por aí 
num diz-que-diz-que

(a coçar o umbigo até ao estômago
pois além do umbigo é só garganta)

com o dedo espetado no nariz.
O que se diz, se desdiz, se contradiz.


© Domingos da Mota

13.11.14

Manoel de Barros (1916-2014)

O CASACO


Um homem estava anoitecido.
Se sentia por dentro um trapo social.
Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado 
e sujo.
Tentou sair da angústia
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no 
lixo.
Ele queria amanhecer.

Manoel de Barros

POEMAS RUPESTRES, Editora Record, Rio de Janeiro . São Paulo, 2004

19.10.14

Soneto pós-50, com estrambotes

Sobre o sexo, sobre a foda,
o acórdão sacramenta:
que se dane, que se foda
quem depois dos cinquenta

use e abuse da foda,
ponha a foda na ementa.
Assim julgam meritíssimos
do alto do seu juízo

atinente e lucidíssimo

sobre o vigor que é preciso
para uma foda a valer.

E após os cinquenta,
o pitéu, esse presigo,
essa coisa de foder

é um risco, é um perigo
bem pior que aparenta.

Quanto ao trânsito em julgado:
será coda?, será fado?

© Domingos da Mota


17.10.14

Pero adeus, ai Deus e u é

Pero Passos, passarão,
ergue a crista no poleiro,
um tudo-nada capão
no papel de timoneiro,
com a pose de tenor
e o bico recurvado,

impassível despudor,
obsceno arrazoado
por demais constrangedor,
pois bastante enviesado
sob o manto de rigor,
Pero tão despassarado.

Pero Passos passarinha
como um galo empertigado,
um tudo-nada, nadinha
convincente sobre o estado
que posterga da vidinha,
das andanças do passado.

Pero adeus, ai Deus e u é,
quanto antes vá ciscar
para longe do meu pé,
muito longe do lugar
por onde faz finca-pé 
de sem dó pisotear.

© Domingos da Mota


13.10.14

Pragmatismo

Mudar conceitos a torto
e a direito, a bel-prazer;

mais a torto que a direito,
de maneira a condizer

com o valor dos preceitos
que tiver de distorcer.


© Domingos da Mota


4.9.14

Cimeira

Cimeira de abutres,
de corvos, de hienas:
refinam as vozes
soberbas, solenes:

entoam os salmos,
os hinos, as preces,
decantam as loas
perenes e prestes

afiam as garras
com unhas e dentes,
e cravam as presas,
num ápice, a quente.

Cimeira de abutres,
de lobos, de hienas:
devassam, disputam -
esburgam-(se) / apenas.

© Domingos da Mota


3.7.14

Ivan Junqueira (1934-2014)

Rosto


Teu rosto em fuga na vidraça
é uma gota que escorre devagar,
tão devagar que o tempo, avaro,
sequer ensaia um magro passo.
Uma gota que cai, sem lastro,
leve como a asa de um pássaro,
mas tão repleta de presságios
que sinto o frio duma adaga
rasgar-me a carne das ilhargas.
Por que, às vésperas do nada,
a alma desperta, arrebatada?

Ivan Junqueira

           (A Sagração dos Ossos)

Brasil 2000 antologia de poesia contemporânea brasileira, Organização de Álvaro Alves de Faria, Alma Azul, Coimbra, Outubro 2000

1.7.14

PROVÉRBIO

     A noite é a nossa dádiva de sol aos que
vivem do outro lado da Terra.

Carlos de Oliveira

SOBRE O LADO ESQUERDO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 1969

30.6.14

AUSPICIOSO ENLACE

Os pais da menina
são gente fina,
os pais do moço
negociantes por grosso.

Joaquim Namorado

A POESIA NECESSÁRIA, Cancioneiro, Vértice, Coimbra, 1966

22.6.14

Lipotimia

O delíquio
Subitâneo
Uma
Reacção

Vagal
O desmaio
Momentâneo
O fanico

O sinal
Do mal-estar
Consentâneo

Com
O senão
Visceral


© Domingos da Mota


27.4.14

Vasco Graça Moura (1942-2014)

vita brevis


a vida breve, revele-a
a pulsação que lateja
no efémero da camélia,
ou no lustro da cereja,

é a do coração que dita
a dor que lhe sobejou
e tenta deixá-la escrita
mas não conta o que escapou

pelo espelho, quando a máscara
vai perdendo o frenesim,
e agora tanto lhe faz: para
o caso é mesmo assim,

nem há lixa ou aguarrás
que apague as marcas que traz.

Vasco Graça Moura

UMA CARTA NO INVERNO, Quetzal Editores, Lisboa, 1997

25.4.14

25 de Abril
















[Nikias Skapinakis - «Delacroix no 25 de Abril em Atenas». 1975]



22.4.14

Grande Prémio Press Cartoon Europe














                                  Boas Notícias

10.4.14

Epigrama cautelar

Cautela com os velhacos:
Fracos com os fortes;
Fortes com os fracos.

Domingos da Mota

3.4.14

COMPOSIÇÃO E INDICAÇÕES TERAPÊUTICAS





















Engolir cobras, lagartos,
elefantes, crocodilos,
e calar, mesmo que fartos
de bramidos e sibilos;

remastigar a dieta
que basta à sopa dos pobres,
sem um ai, uma careta
- um puro esgar e descobres

a expulsão a pontapé
ou o desprezo, mais leve,
assim obriga, assim é
o que a receita prescreve,

em nome da vil tristeza
para cevar a riqueza.

Domingos da Mota

édito 
(com a ilustração do artista plástico Carlos Mansil, o primeiro dos comprimidos literários, n'A BULA, de Abril de 2014, do Correio do Porto).

6.3.14

Leopoldo María Panero (1948-2014)

Faleceu hoje o poeta Leopoldo María Panero. A notícia, e o seu perfil, no El País.

11.2.14

Miró















                      
Joan Miró,  Azul II, 1961





De chave na mão
se faz (quem diria)
a licitação,
melhor, se faria

o dito leilão,
não fosse a porfia
da contestação,
não fosse o banzé,

não fosse o senão
do tiro no pé.
De olho em Miró,

negou-se o pregão
dos quadros, e:
- oh!

 

© Domingos da Mota