30.10.11

UM COELHO COMO REI DOS FANTASMAS

A dificuldade de pensar ao fim do dia,
quando uma sombra informe cobre o sol
e nada a não ser a luz permanece no teu pêlo --

havia o gato derramando o leite o dia todo,
gato gordo, língua vermelha, mente verde, leite branco,
e Agosto o mais pacífico dos meses.

Estar na relva, no tempo mais cheio de paz,
sem aquele monumento de gato,
o gato esquecido na lua;

e sentir que a luz é uma luz de coelho,
na qual tudo é para ti
e nada precisa de ser explicado;

assim não há nada em que pensar. Vem de si mesmo;
e o Este invade o Oeste e o Oeste precipita-se,
não importa. A relva está cheia,

cheia de ti próprio. As árvores em volta são para ti,
toda a imensidão da noite é para ti,
um eu que toca todas as margens,

tu tornas-te um eu que preenche os quatro cantos da noite,
o gato vermelho esconde-se no brilho do pêlo
e aí estás eriçado, eriçado,

cada vez mais e mais eriçado, negro como pedra  --
sentas-te com a tua cabeça como uma escultura no espaço
e o gatinho verde é um insecto na relva.

Wallace Stevens

(trad. Graça Braga)

ANIMAL ANIMAL um bestiário poético, organização de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, Lisboa, Fevereiro 2005

21.10.11

O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis


Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos


O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
           (assim assim)
escriturários
            (muitos)
intelectuais
            (o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles


Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados


Ah o medo vai ter tudo
tudo


(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)


                       *


O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos


Sim
a ratos


Alexandre O'Neill


POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007

2.10.11

Conta de Pero Vaz de Caminha

O homem do Guarani tosse
e espirra constantemente, enquanto
serve os cimbalinos em chávena escaldada
ao dono da residencial Grande Rio
e à striper brasileira. Ela discute no seu
português com adoçante
a conta da electricidade, que no seu país
não entra no contrato.

Inês Lourenço

LOGROS CONSENTIDOS, & etc, Março de 2005