21.1.10

Ideologia 1

Tinha um braço maneta e para o esconder
Andava sempre com uma bandeira.

Tasos Leivaditis

Di Versos, Revista semestral de Poesia e Tradução - N.º 8, Inverno de 2004

19.1.10

ARREPIO NA TARDE

Não sei quem, nem em que lugar,
mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra: um pequeno réptil
no sol súbito e quente de março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ou quatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.

Eugénio de Andrade

Os Sulcos da Sede, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Setembro de 2001

18.1.10

A FACA

A palavra será faca
o sentido será gume
a imagem será chama
mas a matéria é o lume.

Lume dos nervos riscados
pelo fósforo do medo
lume dos dentes cerrados
pela goma dum segredo.

Lume das faces de cera
lume dos dedos de cal
lume golpe lume pedra
lume silêncio metal.

Lume que se acende a frio
e nos devora por dentro
lume agulha lume fio
da faca do pensamento.

Lume navalha que rasga
o ventre da solidão
vingança de quem se gasta
queimando frases em vão.

Lume lembrança das coisas
que nos arderam na voz
cinza viva que nos corta
e nos separa de nós.

José Carlos Ary dos Santos

OBRA POÉTICA, edições Avante!, Julho de 1999

13.1.10

Poema em linha recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões de tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
                                                                           [sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

POEMAS DE FERNANDO PESSOA, Selecção, prefácio e posfácio de Eduardo Lourenço, Visão - JL, Fevereiro de 2006