Dar a teta a uma criança
ou dar a teta a um bispo
é como entrar numa dança
em que o corpo não descansa
porque o velho não amansa
e eu mais que a teta não dispo.
E se o bispo é cardeal
e o cardeal é regente?
Dar o peito não faz mal
dar o corpo é natural
pois quem manda em Portugal
mama na teta da gente.
Porém deitada na cama
não sou dele nem de ninguém.
Mesmo se o velho me chama
não me importa de ser ama
se quem a carne me mama
me rói os ossos também.
António Lobo Antunes
LETRINHAS DE CANTIGAS, Publicações Dom Quixote, Outubro de 2002
«Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.» Ensaio sobre a cegueira, José Saramago
31.3.10
28.3.10
JOGOS
Nunca te disseram
que a aparência é só
o primeiro lance. Em todos
os jogos há sempre
uma carta escondida.
Albano Martins
ESCRITO A VERMELHO, Campo das Letras Editores, S.A., Maio de 1999
que a aparência é só
o primeiro lance. Em todos
os jogos há sempre
uma carta escondida.
Albano Martins
ESCRITO A VERMELHO, Campo das Letras Editores, S.A., Maio de 1999
25.3.10
PARABÉNS
Neste Fevereiro distante
a alegria poisa devagar
não me quero lembrar de nada
entrego as botas e um a um
entramos no grande centro cultural
o último poeta foi atropelado em Braga
morreu no hospital público
com direito a névoa pela manhã
oh o barulho da responsabilidade
a expansão do deserto ao primeiro toque
começa-se por dormir vestido
e depois o pasmo
o risco de vender um verso por desfastio
João Almeida
GLÓRIA E ETERNIDADE, Edição Teatro de Vila Real, Abril de 2009
a alegria poisa devagar
não me quero lembrar de nada
entrego as botas e um a um
entramos no grande centro cultural
o último poeta foi atropelado em Braga
morreu no hospital público
com direito a névoa pela manhã
oh o barulho da responsabilidade
a expansão do deserto ao primeiro toque
começa-se por dormir vestido
e depois o pasmo
o risco de vender um verso por desfastio
João Almeida
GLÓRIA E ETERNIDADE, Edição Teatro de Vila Real, Abril de 2009
20.3.10
Diário
A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.
Ana Salomé
RESUMO a poesia em 2009, Assírio & Alvim, Março de 2010
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.
Ana Salomé
RESUMO a poesia em 2009, Assírio & Alvim, Março de 2010
18.3.10
E OPOSTOS
O amor e o ódio
ali jazem ambos:
o tempo domando,
o espaço sem bordas.
Sempre revigoram
se findos julgamos
sua seiva morta
seu alor mirrando.
Presentes de sempre
no desenrolar
do vão dia a dia,
somente eles vencem
qualquer acalmia
e opostos perduram
descontinuados
em estuante luta.
António Salvado
ESSA ESTÓRIA, Portugália Editora, Junho de 2008
ali jazem ambos:
o tempo domando,
o espaço sem bordas.
Sempre revigoram
se findos julgamos
sua seiva morta
seu alor mirrando.
Presentes de sempre
no desenrolar
do vão dia a dia,
somente eles vencem
qualquer acalmia
e opostos perduram
descontinuados
em estuante luta.
António Salvado
ESSA ESTÓRIA, Portugália Editora, Junho de 2008
14.3.10
FEIOS, PORCOS E MAUS - ETTORE SCOLA (1976)
Compram aos catorze a primeira gravata
com as cores do partido que melhor os ilude.
Aos quinze fazem por dar nas vistas no congresso
da jota, seguem a caravana das bases, aclamam
ou apupam pelo cenho das chefias, experimentam
o bailinho das federações de estudantes.
Sempre voluntariosos, a postos sempre,
para as tarefas de limpeza após o combate.
São os chamados anos de formação. Aí aprendem
a compor o gesto, a interpretar humores,
a mentir honestamente, aí aprendem a leveza
das palavras, a escolher o vinho, a espumar
de sorriso nos dentes, o sim e o não
mais oportunos. Aos vinte já conhecem
pelo faro o carisma de uns, a menos valia
de outros, enquanto prosseguem vagos estudos
de Direito ou de Economia. Começam, depois
disso, a fazer valer o cartão de sócio: estão à vista
os primeiros cargos, há trabalho de sapa pela frente,
é preciso minar, desminar, intrigar, reunir.
Só os piores conseguem ultrapassar esta fase.
Há então quem vá pelos municípios, quem prefira
os organismos públicos - tudo depende do golpe
de vista ou dos patrocínios que se tem ou não.
Aos trinta e dois é bem o momento de começar
a integrar as listas, de preferência em lugar
elegível, pondo sempre a baixeza acima de tudo.
A partir do Parlamento, tudo pode acontecer:
director de empresa municipal, coordenador de,
assessor de ministro, ministro, comissário ou
director-executivo, embaixador na Provença,
presidente da Caixa, da PT, da PQP e, mais à frente
(jubileu e corolário de solvente carreira),
o golden-share de uma cadeira ao pôr-do-sol
No final, para os mais obstinados, pode haver
nome de rua (com ou sem estátua) e flores
de panegírico, bombardas, fanfarras de formol.
José Miguel Silva
MOVIMENTOS NO ESCURO, Relógio D'Água Editores, Lisboa, Novembro de 2005
Compram aos catorze a primeira gravata
com as cores do partido que melhor os ilude.
Aos quinze fazem por dar nas vistas no congresso
da jota, seguem a caravana das bases, aclamam
ou apupam pelo cenho das chefias, experimentam
o bailinho das federações de estudantes.
Sempre voluntariosos, a postos sempre,
para as tarefas de limpeza após o combate.
São os chamados anos de formação. Aí aprendem
a compor o gesto, a interpretar humores,
a mentir honestamente, aí aprendem a leveza
das palavras, a escolher o vinho, a espumar
de sorriso nos dentes, o sim e o não
mais oportunos. Aos vinte já conhecem
pelo faro o carisma de uns, a menos valia
de outros, enquanto prosseguem vagos estudos
de Direito ou de Economia. Começam, depois
disso, a fazer valer o cartão de sócio: estão à vista
os primeiros cargos, há trabalho de sapa pela frente,
é preciso minar, desminar, intrigar, reunir.
Só os piores conseguem ultrapassar esta fase.
Há então quem vá pelos municípios, quem prefira
os organismos públicos - tudo depende do golpe
de vista ou dos patrocínios que se tem ou não.
Aos trinta e dois é bem o momento de começar
a integrar as listas, de preferência em lugar
elegível, pondo sempre a baixeza acima de tudo.
A partir do Parlamento, tudo pode acontecer:
director de empresa municipal, coordenador de,
assessor de ministro, ministro, comissário ou
director-executivo, embaixador na Provença,
presidente da Caixa, da PT, da PQP e, mais à frente
(jubileu e corolário de solvente carreira),
o golden-share de uma cadeira ao pôr-do-sol
No final, para os mais obstinados, pode haver
nome de rua (com ou sem estátua) e flores
de panegírico, bombardas, fanfarras de formol.
José Miguel Silva
MOVIMENTOS NO ESCURO, Relógio D'Água Editores, Lisboa, Novembro de 2005
10.3.10
[Meia sola é meia sola]
7.
Meia sola é meia sola.
Será por isso que a cola
me cheira tanto a vinagre?
Mas meia sola é milagre.
E eis o que ninguém sabe:
que neste cantinho cabe,
na penumbra da oficina,
na casca do coracol,
esta pequena aspirina
que é a largueza do sol.
Pedro Tamen
O LIVRO DO SAPATEIRO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2010
Meia sola é meia sola.
Será por isso que a cola
me cheira tanto a vinagre?
Mas meia sola é milagre.
E eis o que ninguém sabe:
que neste cantinho cabe,
na penumbra da oficina,
na casca do coracol,
esta pequena aspirina
que é a largueza do sol.
Pedro Tamen
O LIVRO DO SAPATEIRO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2010
8.3.10
SANTO E SENHA
Desengaçar a alegria
do chato amável mundo
Lisboa
VII-91
Fernando Assis Pacheco
RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro de 2003
do chato amável mundo
Lisboa
VII-91
Fernando Assis Pacheco
RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro de 2003
6.3.10
DE «A CORDIAL BOTELHA»
1
D. Florinda, rotunda,
de seio farto, infarte certo,
lugar-comum e tradição,
desoprime-se comigo
e ralha-me em tom amigo:
- Oh que carago!
Olha que o Porto é uma nação!
2
- Já agora logo de manhã...
Prontificam-se os algarvios
não-te-rales e papa-figos,
quando não querem (que tios!)
que lhes encanem a perninha à rã.
3
Prontifica-se
a fazer,
mas fica-se
no dizer.
Pronto! Fica-se...
Que se lhe
há-de
fazer?
4
Tome cuidado, senão
fazem-no Dr. do pé prà mão.
Mas se Dr. não diz que é,
fazem-no cão da mão prò pé.
Alexandre O'Neill
DE OMBRO NA OMBREIRA, Publicações Dom Quixote, Porto, Setembro de 1969
D. Florinda, rotunda,
de seio farto, infarte certo,
lugar-comum e tradição,
desoprime-se comigo
e ralha-me em tom amigo:
- Oh que carago!
Olha que o Porto é uma nação!
2
- Já agora logo de manhã...
Prontificam-se os algarvios
não-te-rales e papa-figos,
quando não querem (que tios!)
que lhes encanem a perninha à rã.
3
Prontifica-se
a fazer,
mas fica-se
no dizer.
Pronto! Fica-se...
Que se lhe
há-de
fazer?
4
Tome cuidado, senão
fazem-no Dr. do pé prà mão.
Mas se Dr. não diz que é,
fazem-no cão da mão prò pé.
Alexandre O'Neill
DE OMBRO NA OMBREIRA, Publicações Dom Quixote, Porto, Setembro de 1969
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