31.8.08

Ernesto Cardenal

Cito: de Jornal de Notícias de 31 de Agosto de 2008, Cultura, Literatura:
«Saramago apoia poeta perseguido pela justiça
O poeta e sacerdote nicaraguense Ernesto Cardenal, de 83 anos, enfrenta actualmente a justiça da Nicarágua e o Governo do presidente Daniel Ortega, ao ter sido condenado por injuriar um empresário alemão na disputa de terras.
O intelectual nicaraguense, dissidente sandinista e considerado um dos mais importantes poetas vivos da América Latina, recebeu já o apoio de dezenas de escritores, entre os quais o português José Saramago, o chileno Antonio Skarmeta e o uruguaio Eduardo Galeano.
   "Ernesto Cardenal, um dos mais extraordinários homens que o sol aquece, foi vítima da má consciência de um Daniel Ortega indigno do seu próprio passado, incapaz agora de reconhecer a grandeza de alguém a quem até um Papa (João Paulo II), em vão, tentou humilhar" em 1983, escreveu Saramago. Numa alusão a Ortega, o escritor português acrescentou que "uma vez mais, uma revolução foi atraiçoada por dentro".
   Cardenal foi condenado, por um juiz de tendência sandinista, a pagar uma multa de 20.000 córdobas (pouco mais de mil dólares), sob a acusação de injuriar o empresário alemão Inmanuel Zerger.
   O poeta, que entretanto denunciou perante o Centro Nicaraguense de Direitos Humanos, estar a ser vítima de perseguição, recusa acatar a sentença, que diz ser "injusta e ilegal" e uma "vingança" de Daniel Ortega por ele, Cardenal, ter sido recebido com honras durante a tomada de posse do presidente paraguaio Fernando Lugo, à qual o governante sandinista decidiu não assistir.
   Nascido em 20 de Janeiro de 1925 em Granada, Cardenal foi ordenado padre em 1965 e em 1979, com a chegada dos sandinistas ao poder, integrou a Junta do Governo como ministro da Cultura, entre 1979 e 1990.
   Cinco anos antes de sair, em  1985, foi suspenso "ad divinis" pelo Vaticano, que considerou incompatível a sua missão sacerdotal com o seu novo cargo político.»[...].


Suspenso "ad divinis" e perseguido "ad hominem", eis a «pedra no meio do caminho» do poeta, sacerdote e  Homem da Cultura.


Aqui  subscrevo o meu apoio a Ernesto Cardenal.




Domingos da Mota

28.8.08

«Sinais dos tempos»

Comentário tardio a  parte da crónica «Por outras palavras», de Manuel António Pina, no Jornal de Notícias de 25 de Agosto de 2008:


"Sinais dos tempos"


«O arminho é um pequeno animal (mede entre 15 e 30 centímetros e pesa pouco mais de 200 gramas) incluído no Anexo III da Convenção de Berna (espécie ameaçada, parcialmente protegida e sujeita a regulamentação especial). Para seu azar, seu tão grande azar, tem uma pele felpuda e bonita, que fica bem em adornos ricos como o "camuro" (gorro) e a mozela (estola) de veludo com que  Bento XVI, recuperando o luxo pré-tridentino, agora se exibe, em vistoso conjunto  com os seus famosos sapatos "Prada". O Papa está atento aos "sinais dos tempos", como prescreve o Vaticano II.»


Atento também aos sinais e aos tempos, ao hábito de burel e às sandálias de «el Poverello», e ao refinado diapasão do cronista, salmodio piamente:


Santa ostentação,
Santo luxo, tão bento,
Santa ecologia,


Rogai por nós.


Domingos da Mota

23.8.08

Toada do peixespanto

        Não, Àrtur,  se tenho dó
        é de mim, que, para ti,
        pelo que vi e não comi,
        um peixe nunca vem só...


        Alexandre O'Neill




Ouvi dizer que o durão,
se fosse peixe amestrado,
seria cherne / se não
um salmonete escalado:
peixe-barroso?, pimpão?,
peixe-frade acolitado?,
peixe-rato?, peixe-cão?
- No mar alto da ambição
de peixe-galo cantado.


Ouvi dizer que o durão,
se fosse peixe acossado,
seria solha / ou então
um carapau alimado:
peixe-diabo?, tritão
do peixe-gato escaldado?
Xaputa de boqueirão!
- Do tamboril ao cação,
até ferve o linguado.


Cuido porém que o durão,
esse peixe apregoado,
mais parece um lingueirão,
um safio refinado:
pata-roxa?, tubarão?,
agulhão dissimulado?
- De peixe-espada na mão,
mais um destro cortesão
do peixe-rei / do mercado.


© Domingos da Mota

15.8.08

Bestiário/1

Grandes tubarões:
fervilham, fervem nas águas
amassadas: exploram.

Agitam os cardumes
que perseguem, e apavoram
o peixe miúdo.

Tantas, tão hiantes as piranhas:
eléctricas, vorazes, espectrais,
no mundo feroz dos canibais.

Infestam. Abocanham-se.
Alardeiam. Arreganham os dentes.
Banqueteiam-se.



© Domingos da Mota

11.8.08

Figurações

          água-forte em relevo


Era uma vez um país
embolado a navegar
no alto do seu nariz,
e à beira de naufragar.


Um país de tiranetes,
de santarrões no altar,
de barões, de baronetes,
de validos, de valetes
por aí a desfilar;


um país de figurões
carregados de negaças,
onde os galos e os capões,
a mando de passarões,
arreganham ameaças;


um país de sectários,
de falsários, de falsetes,
de caciques, de sicários,
cães de fila, mercenários
e de espirra-canivetes;


um país de saltimbancos,
de palhaços, bailarinos,
de tartufos, e de tantos
morcegos e olhimancos
à caça de gambozinos;


um país de gente fina,
gente de fé, impoluta
que tresanda e peregrina
entre a vénia e a verrina
com a língua mais hirsuta.


E o país de virotes,
fura-vidas, fura-bolos,
de fariseus, de zelotes,
de volteios e pinotes
e chuva de molha tolos,


bruscamente acometido
pela febre e pela aragem,
perde o pé e o sentido:
entrega o ouro ao bandido:
e é fartar, vilanagem!


Um fartão de pesporrências,
destemperos, desconchavos,
de mordaças, de impudências,
e de pardas eminências
de um bando de patos-bravos.


Nesse país de opereta,
o regente, sem batuta,
segue a toque da trombeta,
dos fagotes, da veneta
de grandes filhos... / da pauta.


Era uma vez um país
levantado à beira-mar
a sacudir a cerviz
e com pernas para andar.


© Domingos da Mota