27.4.25

Do tardo-fascismo

Com aura de redentor,
de salvador da nação,
um serôdio seguidor
do de Santa Comba Dão

anda à solta na cidade
(não é D. Sebastião)
e promete à liberdade
colocá-la na prisão:

fala grosso, dão-lhe espaço,
e vezeiro em malas-artes
faz o ninho no regaço
de arrivistas e compartes.


© Domingos da Mota

24.4.25

Basta, bonda!

Não me vou achegar nem sequer dar-me 
com quem chega a tal ponto: basta, bonda!
Abundam por aí, querem guiar-te,
e levantam o facho e vão na onda

e ameaçam nas praças e avenidas 
e difundem o eco nas pantalhas
(a saudação romana reaviva 
o sonho celerado de canalhas).

À turba que destila ódio e fel, 
movida pela cega obsessão
contra o outro, o diferente, o de fora,

acenam com o pão, 
o vinho e o mel
(ocultando a pesada mão de ferro 
onde quer que dominem, como outrora).

© Domingos da Mota

17.4.25

Das suspeitas

Há suspeitas
e suspeitas:

as que mantêm o véu
num manto de opacidade

e as que põem ao léu
as raízes da verdade.


Domingos da Mota

14.4.25

HINO ELEITORAL

Era uma vez um país
chamado a sufragar
as avenças do Luís,
o que está a governar
menosprezando a matriz
da decência no lugar.

Não votarei no Luís,
no Luís não vou votar.

O hino que ora diz
deixa o Luís trabalhar,
não incentiva o Luís
a debater, e a mostrar
tudo o que tem (ao que diz),
para ninguém suspeitar?

Não votarei no Luís,
no Luís não vou votar.

Sabendo que o Luís
quer tão-só plebiscitar,
apesar do diz-que-diz,
esse seu modo de estar
no poder, contra a matriz
do governo exemplar,

não votarei no Luís,
no Luís não vou votar.

Se há quem vote no Luís,
no que vai mercadejar,
privatizar do país
a quem o queira explorar
desde o topo à raiz,
água, terra, fogo e ar,

não votarei no Luís,
no Luís não vou votar.


© Domingos da Mota

7.3.25

das avenças, desavenças e moções

eu não acumulei coisa nenhuma
eu não acumulei coisa
eu não acumulei
eu não
eu

*

tu? 
tu não? 
tu não acumulaste?
tu não acumulaste coisa?
tu não acumulaste coisa nenhuma?

DM

24.2.25

[Quem apadrinha e faz coro]

Quem apadrinha e faz coro

com as toadas de ódio,

postergando, sem decoro,

que se desate o nó górdio?


Domingos da Mota

19.2.25

Negociações de paz

Enquanto uns partem

pedra, outros projectam

mais pedregulhos


Domingos da Mota

1.2.25

Toque

Deu-me um toque
virtual.
Que sentido
terá ele

quando o seu
potencial
não o sinto
sobre a pele,

nem o vejo,
nem o escuto,
nem é toque
à la minuta?

O enfoque
nesse toque
imprevisto,
sem aviso,

mais parece
um toc, toc
virtualmente
indeciso.

Domingos da Mota




19.1.25

sonhei

sonhei
que um fogo vindo do céu
devastava a América.

o homem sonha.
se deus quiser
a obra nasce.

Alberto Pimenta


QUE LAREIRAS NA FLORESTA [de as moscas de pégaso], 7 nós, Porto, Janeiro de 2010

31.12.24

Adília Lopes (1960-2024)

Tenho uma vida
a viver
e uma morte
a morrer


Adília Lopes



LE VITRAIL LA NUIT
A ÁRVORE CORTADA
, & etc, Lisboa, Fevereiro de 2006

21.12.24

Rua do Benformoso


Saiu à rua a feiura,
na rua do Benformoso,
com tiques de ditadura,
pondo em prática a leitura
do discurso capcioso

que repisa, sem razão,
o labéu contra o estrangeiro,
à sombra da percepção
de que será um papão
ou um vulgar candongueiro.

Como se fosse num gueto,
virado para a parede
quem na rua trabalhava,
passeava ou morava,
ou quem tinha mau aspecto,

na rua do Benformoso
adestrou-se a percepção
do poder que, ardiloso,
tem um discurso manhoso
de populista – malsão.


© Domingos da Mota


(Fotografia colhida na página do Facebook de Carlos Matos Gomes)

8.12.24

Avó

minha santíssima avó
com um vestido comprido justo
abotoado
com uma quantidade incontável
de botões
qual orquídea
qual arquipélago
qual constelação

sento-me no seu colo
e ela conta-me
o universo
de sexta
a domingo

compenetrado
sei tudo –
– sobre ela
a única coisa que oculta
é a sua origem
avó Maria apelido de solteira Balaban
Maria Calejada

nada diz
sobre o massacre
da Arménia –
o massacre dos Turcos

quer poupar-me
conceder-me vários anos de ilusão

sabe que chegará o dia
em que o descobrirei por mim mesmo
sem palavras maldições e lágrimas
a superfície
áspera
e a profundidade
da palavra

Zbigniew Herbert

POESIA QUASE TODA (1956-1998)
, Introdução de J. M. Coetzee, Selecção de J. M. Coetzee e Alissa Valles, Tradução do polaco e notas de Teresa Fernades Swiatkiewicz, Edição Cavalo de Ferro, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda., Lisboa, Outubro de 2024

2.11.24

Ponto final, parágrafo

A morte não bate à porta,
acomete, não avisa
e, sem mesuras, fatal,
dita o ponto final.

O parágrafo seguinte
serão outros a escrevê-lo,
com mais ou menos desvelo,
com mais ou menos requinte.


© Domingos da Mota

25.10.24

Epigrama cautelar

Cautela com os velhacos:
fracos com os fortes;
fortes com os fracos.

© Domingos da Mota

Uma Abelha na Chuva - 1971

21.10.24

Grandessíssimo!

Como é rico oh! 
riquíssimo esse grande
grandessíssimo!


© Domingos da Mota

29.9.24

perder a face

se há quem passe
e quem repasse
palavras-passe
casas de passe

e isto dá-se
e aquilo faz-se
sem que se caia
se perca a face


© Domingos da Mota

27.7.24

16.6.24

[Apanhado por um pico]

Apanhado por um pico
de popularidade o modelo Varoufakis
de mochila esgotou-se.


Francisco José Craveiro de Carvalho

Quatro Garrafas de Água
, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2017

22.5.24

Retórica de guerra

Propaganda
Contrapropaganda

Verdades
Meias-verdades

Mentiras
Pós-verdades


Domingos da Mota


17.5.24

Casimiro de Brito (1938-2024)

Música Nua



39.


É o barro
que se converte
em mulher
ou a mulher que
em luz
se converte?


Casimiro de Brito

Música NuaCoisas de Ler Edições, Lda., Setembro de 2017