30.8.13

Seamus Heaney (1939-2013)

Limbo

Pescadores em Ballyshannon
Apanharam esta noite uma criança
Na rede, juntamente com o salmão.
Uma desova ilegítima,

Pequeno ser devolvido
Às águas. Mas estou certo
Que quando ela, nos baixios,
O mergulhou ternamente

Até os nós gelados dos dedos
Estavam mortos como os seixos,
Ele era um isco com anzóis
A rasgá-la por dentro.

Ela entrou na água sob 
O sinal da sua cruz.
Ele veio na rede com o peixe.
Agora o limbo será

Um frio reluzir de almas
Numa região distante e salgada.
Mesmo as palmas de Cristo, por sarar,
Doem e não conseguem pescar lá.

Seamus Heaney

DA TERRA À LUZ poemas 1966 - 1987, Tradução, prefácio e notas de Rui Carvalho Homem, Relógio D'Água Editores, Janeiro de 1997

12.8.13

UHF - Vernáculo

NÃO GRITEIS MAIS

Cessai de matar os mortos,
Não griteis mais, não griteis,
Se os desejais ainda ouvir,
Se confiais em não cair.

Têm o imperceptível sussurro,
Não fazem mais rumor
Do que o crescer da erva
Alegre onde não passa o homem.

Giuseppe Ungaretti

SENTIMENTO DO TEMPO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Fevereiro de 1971

9.8.13

Nocturno

Ver-te-ei por ventura de novo
subitamente
ao pé daquela fonte
onde os pardais e os ganhões se juntavam
no fim da jorna
e as brancas pombas vinham bicar
grãos de luz
sob a exaustão do dia
e havia franças de árvores a adormecerem
na agonia da esperança?
Não nunca mais verei o verde
dos teus olhos essa ternura arisca
Quando te perdi comecei
a atravessar o ácido rio do silêncio
Depois essa dor encolheu
como todas as coisas
No reflector que há dentro de mim
capto agora a imagem insólita
da lua e vejo a respiração dos poços
à volta da vila sonhando
a muda tristeza das suas muralhas
Anoiteço sem lágrimas 
e continuo a sofrer sem saber já exactamente
se sofro por ti que partiste
ou por esta despedida de mim

                                                                                          2008
Urbano Tavares Rodrigues

Horas de Vidro, [Poemas do Novo Século], Publicações Dom Quixote,  Lda., Lisboa, Fevereiro de 2011