24.11.12

ESPANTA-ESPÍRITOS

Amanhã tudo será pior
ainda, eu sei: o hábito, a inércia,
o sem remédio da vida - tão pouco
haverá a salvar.

Por toda a cidade os desconhecidos
subirão outro degrau para o escuro
da noite, e a memória será talvez
um remorso:

aquela manhã de sol
na varanda, o espanta-espíritos
com peixes de alumínio num rosário
de contas profanas.

Ainda o tens? Ainda canta,
de madrugada, se o vento sopra
do mar?

Não importa. Foi sempre de menos
o muito que pedimos

e a parte que tivemos.

Rui Pires Cabral

CAPITAIS DA SOLIDÃO, Edição Teatro de Vila Real, Outubro, 2006

19.11.12

Mil Novecentos e Noventa e Um

Velhas coisas são as que guardamos
no sótão
e não queremos devolver à procedência,

uma vara de garrafas vazias,
revistas esfarrapadas,
cartões de visita,
um par de sapatos de verniz,
quase novos,
a que se junta
uma carteira gasta,
de senhora,
um manequim sem cabeça,
uma panela furada,
o berbequim.

Pena é que os furos possíveis
não caibam já no cinto,
e a dentadura
não nos caiba na boca.

Presa a língua à trave que suporta o telhado
e as palavras disponíveis
para abate,
teríamos, por fim,
acantonado o silêncio,

o desusado silêncio
do sótão imperturbado.

Amadeu Baptista

açougue, &etc, Lisboa, Junho de 2012

18.11.12

MATEUS, 26, 26

Tomai, este é o meu corpo:
formas e símbolos.

Fora de mim, o meu reino
desmembra-se dentro de mim.

E o que fala falta-me
dentro do coração.

E estou sozinho fora de mim
como um coração fora de mim.

Manuel António Pina

POESIA REUNIDA (1974-2001), Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro 2001

16.11.12

Os inquiridores

Está o mundo coberto de piolhos:
Não há palmo de terra onde não suguem,
Não há segredo de alma que não espreitem
Nem sonho que não mordam e pervertam.

Nos seus lombos peludos se divertem
Todas as cores que, neles, são ameaças:
Há-os castanhos, verdes, amarelos,
Há-os negros, vermelhos e cinzentos.

E todos se encarniçam, comem todos,
Concertados, vorazes, no seu tento
De deixar, como restos de banquete,
No deserto da terra ossos esburgados.

José Saramago

Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Outubro de 1998

15.11.12

[O valor das coisas]

O valor das coisas
não está tanto nelas
como no valor que lhes atribuímos
Daí a nossa incerteza
mas também a margem
da nossa liberdade

António Ramos Rosa

Em torno do imponderável, Editora Licorne, Lisboa, Outubro de MMXII

13.11.12

Greve

"greve (1962)", de Augusto de Campos

P.S.: Amanhã este blogue vai fazer greve.

11.11.12

[O poeta carreirista]

O poeta carreirista
está sempre a morrer nos poemas
de cancro do pulmão ou cirrose hepática
mas na verdade cuida da sua obra (e do respectivo autor)
data-a e arquiva-a minuciosamente
trava mesmo amizade com uma bibliotecária
que o auxilia em bräille
não vá acontecer-lhe
como a Camilo
frequenta o ginásio,
masca Trident Senses
e milita nos partidos certos.
O poeta carreirista já nasceu poeta
foi bem orientado desde pequeno
inscrevendo-se na Associação Portuguesa de Autores
mesmo sem obra publicada
não fosse alguém roubar-lhe a ideia
dorme com um olho aberto outro fechado
- nos poemas lê-se insónia -
e namora rapariga letrada
embora aos 35 sofra uma crise de orientação sexual
e aos 40 tente uma escrita erótica mais abrangente
a manquejar Sena e a farejar alguns espanhóis.
O poeta carreirista não bebe cerveja
mas vinho tinto do Alentejo
abre às vezes excepções e acompanha-a com
tremoços e caracóis.
O poeta carreirista vai a tudo
rádio, TV e revistas,
coquetterie fina
e instala-se, de preferência, na capital.

Ana Paula Inácio

2010-2011, Averno, Junho de 2011

4.11.12

[Porque o poema é sempre contra o vómito]

Porque o poema é sempre contra o vómito.
Porque o poema é sempre, SOBRETUDO,
contra engolir o vómito.

Vasco Gato

Omertà, Quasi Edições, Março 2007