12.11.23

Escutas

1


Será verdade ou rumor
o que escuta o ouvidor?

2


Será verdade ou cabala
a escuta que ora abala?


Domingos da Mota

8.11.23

oráculos

de oráculos 
e comentadores avençados,
livrai-nos, senhor

DM

31.10.23

a guerra é sempre horrenda

a guerra é sempre horrenda:
até a guerra santa

Domingos da Mota

24.10.23

GAZA

Se isto
não é um
holocausto

[parafraseando Primo Levi]


Domingos da Mota 



2.10.23

MÁQUINA

Vende-se

Máquina de fazer sonetos
Marca Ghost Writer Poetry

Em bom estado
Pela melhor oferta


© Domingos da Mota

28.9.23

Trinta

Qual a diferença...
entre um cego
e aquele que não quer ver.

Qassim Haddad

UM ÁRABE É UM ÁRABE, É UM ÁRABE, UM ÁRABE
, breve antologia de poesia árabe, textos introdutórios, Daniel Ferreira e Joana Santos, versões e traduções, André Simões e Joana Santos, 4.ª edição, contracapa, Vila Meã, Setembro de 2023:24

16.9.23

Este é um lugar onde...

Este é um lugar onde
a brusquidão da língua
faz crescer por vezes
flores hirsutas.


João Pedro Mésseder


O Porto Com Suas Palavras, Edições Plenilúnio, Coimbra, Março de 2023:20

7.9.23

Arroz de cabidela

Pois eu gosto de arroz de cabidela,
se o pica no chão, de crista ao lado,
estrugir, quanto baste, na panela
e sair a cantar do refogado.


© Domingos da Mota

25.8.23

Turismo de guerra

Foi às sortes nas trincheiras
para a banda dos Urais.
Outras foram as maneiras
com que evitou as trincheiras
das guerras coloniais.


Domingos da Mota

7.8.23

Emprega a facúndia

Emprega a facúndia
por tudo e por nada:
conversa redonda
que a língua afiada
tende a alvorotar

onde quer que esteja,
comente, disserte,
prescreva. Sagaz
coloca a cereja
em cima do bolo

usando o solerte
talento de apóstolo
assaz loquaz.
É vê-lo na missa
atento ao sermão.

(E entra na liça
a contradição:
sendo o estado laico,
deve o do timão,
sem ser farisaico,

ir ao beija-mão
do bispo, do papa
ou do cardeal?)
Do flash não escapa,
etc. & tal.


© Domingos da Mota

19.7.23

2.7.23

CÃO DE PAVLOV

Tanta sede de holofotes.
Tanta fome de palanque.

Tanto cão
de Pavlov.


Domingos da Mota

in Eufeme n. º 23 Magazine de Poesia (Abril/Junho 2022)

8.6.23

Bloqueio

Estás temporariamente bloqueado,
diz-me o sisudo algoritmo.
Ficarei tão enfadado
que zangado perca o ritmo?

Mudo de ares, apenas isso,
e sem dar valor ao acto,
deixo aqui o breve esquisso
de um manguito abstracto.


© Domingos da Mota

4.6.23

[Será preciso coragem]

- Meu tempo é quando.

Vinicius de Moraes



Será preciso coragem
para abalar e partir
sem bilhete nem bagagem
no comboio que há-de vir?

Sem dinheiro, passaporte
nem cartão de cidadão
nem o acaso da sorte
que abrigue a ilusão?

Embarcar na carruagem
e sem olhar para o cais
iniciar a viagem
para sempre e nunca mais?



© Domingos da Mota

30.4.23

papagaios

palram os milhazes
grasnam os germanos
sempre loquazes
tão acacianos

e dos papagaios
que assim tagarelam
quantos são lacaios
ou peões de brega


© Domingos da Mota


7.4.23

Porque os bons sofrem tormentos

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.

Luís de Camões


alienados e pobres
com smartphones da moda
nossos políticos, mui nobres
a dizerem "que se fod...!!"


António Carlos Cortez



Não serão todos, mas quase
os que dizem "que se foda!"
que olham de cima as bases
quando estão na alta roda
do poder e, ademais,
concentram-se no umbigo
dos seus pontos cardeais.
Mas distinguir é preciso.
Se te moem a cabeça
de tal jeito e com tais modos

que xingá-los apeteça,
hic et nunc, a quase todos,
mandá-los àquela parte
(mandá-los até à merda),
há que fazê-lo com arte,
para baixar a proterva
e obscena arrogância
do poder, as desmesuras
a que conduz a ganância
de ter mando e sinecuras.

Porque os bons sofrem tormentos
e os maus gozam a rodos,
à mercê de cata-ventos
e de insólitos engodos
andam muitos, sobretudo
os que sujeitos a apertos
se batem por ser alguém,
mas sem ver o desacerto
que atinge o zé-ninguém,
agravam o desconcerto.


© Domingos da Mota




13.3.23

Pecadilho

Mero atentado ao pudor,
segundo sua eminência,
sem razão para o clamor,
a celeuma, a estridência

que sobressalta o rebanho,
o que ora tuge e muge;
sendo um simples pecadilho
como sempre, como antanho,

por que razão há quem ruge
e amplifica o sarilho?
Ressarcir quem tenha sido
no seu templo violentado,

é um insulto parido,
pior que insulto, um pecado
capital.
Outrora, boas palavras

tratavam dessa ferida,
co'a promessa de alcançar
a vida 
depois da vida.


Domingos da Mota

11.3.23

Pena

Suspender é pena dura,
afastar, talvez um dia,
dize, com má catadura,
do topo da hierarquia.


Domingos da Mota

9.3.23

Do báculo e da mitra

Impassíveis quando isto
cheira a esturro, cheira mal,
continuam o dom bispo
e o velho cardeal.

Ambos ocultam diversos
dos que sob a sua alçada
são pedófilos perversos,
como se não fosse nada,

e recusam suspender,
por medida cautelar,
aqueles que, é bom de ver,
procuram dissimular.



Domingos da Mota

5.3.23

António Salvado (1936-2023)

Um fio de água


Um fio d'água foi o teu passar
tão fugidio que os meus olhos    presos
àquele movimento de surpresa
quase sem ver    mas vendo-te    ficaram.

Tua figura esguia meneava-se
como folhas vernais dum arvoredo
que uma brisa veloz tivesse aflado
subitamente para mais crescerem.

E assim cruzaste a minha solidão
sorrindo tão de leve que nem lembro
se para mim olhaste    em tal exílio.

Mas satisfez o que me deste    então:
que uma fonte escondida existe sempre
capaz de brotar água: seja um fio.


António Salvado

Um fio de água
, Antologia mínima I, Organização Nicolau Saião, Sirgo MMXII

7.2.23

AVARENTO

Cobiça
concupiscente a moeda

o metal com um sorriso
avarento infinitesimal


Domingos da Mota

Bolsa de Valores e Outros Poemas
, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010

7.1.23

TOCATA


Outra vez um nome:
rosto aceso, altivo,
com os olhos
pensativos, desfocados:

desvenda, abre sulcos
fatigados - de súbito
mais chão, rugoso, acídulo
Recorda, lembra

o mosto, o vinho,
o trigo, os dias
luminosos, demorados

(E os ossos a latir,
destemperados, laceram
o fulgor do lume vivo)


© Domingos da Mota

Bolsa de Valores e Outros Poemas, edição: Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010