26.8.10

SONETO CONTRA AS PESPORRÊNCIAS

É favor não pedirem a esta poesia
que faça o jeito às alegadas tendências
do tempo nem às vãs experiências
que sempre a deixaram de mão fria

o que iria bem mas mesmo bem seria
num jornal a coluna das ocorrências
as coisas da vida mais que as pesporrências
editoriais do comentador do dia

o que vai mal com ela são as petulâncias
de que se vestem muitas redundâncias
dando-se públicos ares de sabedoria

que o leitor farto das arrogâncias
magistrais troca por outras instâncias
onde pode mandá-las pra casa da tia

Fernando Assis Pacheco

A MUSA IRREGULAR, Assírio & Alvim, Novembro 2006

21.8.10

CRÓNICAS

Mulheres de canastra à cabeça, que num recôncavo
de esquina, não calcetada, onde uma nesga
de terra desmentia o urbanismo
invasor, mijavam de pé
com rara pontaria dissimulando
entre as grossas saias, as
pernas afastadas. Não usavam cuecas
tal como uma modelo da Vogue,
cujo profundo decote dorsal,
prolongado abaixo da cintura,
as abolia.

Coincidências
da baixa plebe
e da alta-costura.

Inês Lourenço

COISAS QUE NUNCA, & etc, 2010

14.8.10

espinhos

os espinhos florescem
sobre o rosto.
rasgam estas mãos
para melhor dilatarem
a força da corrente.
antecipo a morte
para destruir a morte.
difundo sobre as águas
a imagem do sangue -
que enobrece a madeira
e a pureza da tinta.

Ruy Ventura

INSTRUMENTOS DE SOPRO, Edições Sempre-em-Pé, Março de 2010

4.8.10

Resumo

Gerou os filhos, os netos,
deu à casa o ar da sua graça
e vai morrer de câncer.
O modo como pousa a cabeça para um retrato
é o da que, afinal, aceitou ser dispensável.
Espera, sem uivos, a campa, a tampa, a inscrição:
1906-1970
SAUDADE DOS SEUS, LEONORA.

Adélia Prado

com a devida vénia, de Poesia reunida, Editora Siciliano, São Paulo, 1999

1.8.10

DEMÓCRITO

Prefiro entender o que sei
a poder ser, na Pérsia, rei.

Eugénio Lisboa

com a devida vénia, de O Ilimitável Oceano (Algumas Observações), Quasi Edições, Março, 2001