27.12.09

Poemas de Pedra e Cal

Edificamos a nossa casa dos sonhos
com tijolos e cimento, com a massa

feita à mão.

E tu dizes-me: olha este acabamento!
e dali saem asas de andorinha
e a casa começa por palavras
e termina no telhado com poemas...

Fernando Morais

republicação, de Poemas de Pedra e Cal (inéditos)

26.12.09

ASSIM COMO ABRIR OS OLHOS

achei a agulha
que perdi no palheiro
não foi graças a cunhas
a favores
a intrigas
a ameaças

piquei-me

Francisco Gonçalves de Oliveira

E LOGO ONTEM O FUTURO, Poemas, Edição do Autor, Porto, 2009

6.12.09

O Sermão

Do púlpito saíam sons tremendos
não era fala de gente nem guinchos de bicho
eram ameaças para além da morte
eram chibatadas e roufenhas
quase palavras de castigo

As inocentes vítimas sentadas
murmuravam de cabeça baixa
num templo de fios eléctricos
microfones e sintetizadores...

Às tantas o discurso acabou
e passou a saca das esmolas
toda ufana e contente...

era a única que não estava assustada!

Fernando Morais

(Inéditos)

3.10.09

porcelana

o rosto esmaltado da menina
nascida em londres
no ano da graça de 1894
em relevo na tampa
da lata de caramelos
ficou preso na armadilha lilás
da minha insônia




Júlio Saraiva


do livro inédito SE EU MORRER ONTEM OU QUE SE DANE A FESTA

6.7.09

DITOS

Ignoro a lei, do mais forte
colho fraquezas. Jogo a indecisão
ao limite das escolhas e do reverso
medalho o peito: ao esteta cabe
a resolução da tinta sobre a tela.


       Estatelo o concreto
       e me abstraio
       ao recente: arranco pregos
       depositados e entrecuzo
       vidas. Desenrolo a lei
       ofertada ao amigo. Aos inimigos
       deposito moedas cunhadas
       em honra da vitória.


Pedro Du Bois


(inédito)

13.4.09

CANÇÃO DO POEMA INÚTIL

para Domingos da Mota


«Morreram todos a bordo, mas o barco persegue o intento
que desde o porto vem buscando.»


Giórgos Seféris (*)




não me seduz mais Poeta caminhar entre os mortos


as palavras estão gastas como as solas dos meus sapatos


cansadas de percorrer essas ruas sem saída


as feridas nos meus olhos não cicatrizam mais


há esquinas e mais esquinas que carrego comigo


numa delas minha mulher me espera com um sorriso


e um pôr-de-sol nas mãos muito brancas


talvez faça isto apenas para me consolar


porque meu navio naufragou Poeta e todos morreram


devo por esta razão agradecer aos céus por ainda estar
quase vivo


não cheguei ao porto que desejava chegar


por não conhecer a intimidade do mar e a astúcia dos ventos


deixei-me guiar pela bússola que pensei existir na palma
da minha mão


mas o norte era outro e eu não consegui decifrá-lo


fui traído pelos próprios códigos que criei


agora percebi que sou frágil


mas em compensação Poeta não sinto nenhuma necessidade
do poema


e nenhum deus mais  me diverte


só a inutilidade me abriga


só a inutilidade me abraça




Júlio Saraiva


(*) a epígrafe utilizada são versos do poema O ar de um dia, de Séferis, traduzido pelo poeta brasileiro José Paulo Pais

8.4.09

RENÚNCIA

Renuncio ao prêmio e retorno ao jogo
iniciado no entardecer. A correta hora
das despedidas não enseja glórias.
Imerecidas honras decompostas
em fases percorridas na necessidade
de estar vivo enquanto o tempo
repete seus ponteiros e o cansaço
torna o corpo descompassada
luta na ilusão da sobrevivência


o andamento desacelerado em declarações
de razões impostas em restrições contidas
nas dores sentidas pelo corpo físico


anterior ao prêmio houve a aposta
e ganhar ou perder se mostrou igual
em virtudes e talentos: aos olhos amigos
restam lembranças condoídas de horas
passadas em significações e retratos.


Pedro Du Bois


em A HORA SUSPENSA

26.3.09

XLV - A Objetividade da Coisa - Pedro Du Bois

A coisa é formada
na realização de sonhos.


    Objetiva ser o peso
concentrado em luzes,
             o inescapável
          e a sutileza
          do sentimento.


           Primeira e seguinte,
           a coisa é objetivo
           diverso do objeto.


(Pedro Du Bois, em OS OBJETOS E AS COISAS)

27.2.09

MANIFESTO ANTI-DDT


Em prol
do sacrossanto deus do Mercado, 
do capitalismo galopante, 
da Trilateral
dos clubes de Bilderberg e de Davos, 
do G7 ao G80
dos eixos do Bem e do Mal,
dos monopólios, das multinacionais,
das alterações climáticas, do aquecimento global, 
dos tufões, ciclones, cataclismos, terramotos, maremotos, 
da fome, 
da barbárie de todas as guerras
intestinas, cibernéticas e reais: 
(santas, civis, preventivas, de conquista, de ocupação,
 de genocídio), 
dos fluxos financeiros, dos offshores
do petróleo, da energia nuclear, pobre ou enriquecida, 
das  energias sujas, limpas e renováveis, 
dos recursos aquáticos, marinhos, terrestres, aéreos 
e extra-terrestres,
em suma, 
da Globalização 
e, máxime, dos lucros obscenos,
 as potências europeias e mundiais e os seus aliados, 
de geometria variável,
 (santidades, patriarcas, imperadores, reis, príncipes,
sereníssimas majestades e altezas, 
aristocratas de puro-sangue azul e de sangue assim-assim, 
duques, marqueses, condes, viscondes, barões, marajás, sultões, mandarins, vizires, plutocratas, oligarcas, usurários, 
banqueiros, especuladores financeiros, comendadores,
latifundiários, terras-tenentes, nababoscapitães da indústria, 
cabos-de-guerra, cardeais, arcebispos, bispos, 
abades e abadessas, cónegos. pastores, vigários, priores, 
eminências, reverências, excelências, senhorias
luminárias, eminências pardas e outras sumidades 
e suas excrescências,
e mesmo, 
à revelia 
dos Povos e das Nações,
presidentes, 
parlamentos, governos,
congressistas, governadores,
eurocratas, comissários, deputados, embaixadores, 
ministros plenipotenciários, etc.
proclamam),
no alto da sua de jure potência
urbi et orbi,
de direito e de facto,
a partir daqui e de agora
(deste fatídico mês do Solstício de Verão
do ano bissexto de 2008, d.C.,
mês da Pedra no Sapato,
do Grão de Areia
na engrenagem dos Supremos Interesses):
dada a consabida 
Douta Ignorância
dos povos em geral, e do povo em particular 
que teve a ousadia, cometeu 
a soberana heresia de, 
em referendo,
afirmar um rotundo Não
ao preclaro e subido
Tratado de Lisboa
que,
mais do que um Tratado, é um hino à diplomacia,
à sabedoria, à filosofia, à lógica, aos silogismos 
categóricos, aos axiomas,
à teoria política,
à meridiana clareza
(palavra por palavra, vírgula por vírgula, ponto
por ponto, frase por frase,
com cláusulas, objecções, remissões, excepções, 
denegações e outras dejecções),
no fundo, 
uma sinfonia plena
de fugas, fugato, adagioallegro con brio, largo-vivace
andante con motofinale: presto,
porreiro, pá!,
uma quase hierofania,
as Tábuas da Lei, das Normas, das Regras,
e decretam
(não vá 
o diabo voltar a tecê-las):
a proibição, o fim, a rasura, a anulação
de sondagens de opinião, de referendos
e de eleições gerais 
em todos os países.
Obrigam-se,
hic et nunc,
os Altos Dirigentes dos arcos do Poder,
sentados à Mesa do Orçamento 
dos Supremos Interesses
(lordes e comuns, 
talassas e republicanos de botas-de-elástico, 
democratas de cor de burro quando foge, 
socialistas da boca para fora, trabalhistas 
da centésima vaga, socialistas à tripa forra, 
sociais-democratas, mutatis mutandis
populistas puros e duros, neo-liberais, 
hiper-liberais, conservadores, democratas-cristãos 
com presunção e água benta, 
de não há cristão que aguente, velhos
e novos fascistas, nazis e quejandos),
a expurgar as 
suas Constituições
de todos os direitos, liberdades e garantias.
A partir 
daqui e de agora:
se qualquer Povo sair do Redil,
por rebeldia 
ou por ignara sabedoria
(e assim ameaçar, 
com um grão de areia que seja,
a roda inexorável dos Sumos Interesses),
à revelia 
desta Norma imperativa,
assumirão 
os Seus Altos Dirigentes, perante Nós 
e perante a História,
o ónus de, sem apelo nem agravo,

Dissolver o povo
E eleger outro.

Em nome 
da tradição judaico-cristã, se o povo eleito,
contaminado pelo espírito do lugar,
vier também a rebelar-se contra qualquer dos
Superiores Ditames,
volta-se a dissolver  o povo, deixa-se o lugar em pousio,
e ponto final,
parágrafo.

*

Mais se
decreta,
de forma impositiva
 o Fim da História, 
da rosa-dos-ventos, das ideologias, das utopias,
da direita e da esquerda
(e todos ao molho e fé em Deus),
mas, sobretudo,
o fim
da luta de classes
que, 
pragmaticamente, passarão a ser 
duas,
e somente 
duas:
de Cima,
e a de baixo,
com quotas imutáveis:
0,001%, para a classe de Cima,
e 99,999%, para a classe de baixo.
(Nos interstícios entre ambas as classes sociais, 
poderá manter-se, com prazo a termo certo, 
uma subclasse, do tipo limbo ou purgatório,
nem carne nem peixe, entre o céu e o inferno,
onde cabem os testas-de-ferro, 
tiranetes, mandatários, validos e valetes, assessores,
consultores, burocratas, fazedores de opinião, comentadores,
louvaminheiros, lambe-botas, sicofantas,
puxas-sacos, paus-mandados, 
cães de fila e de guarda e de caça e de guerra
e sicários, capatazes, feitores, maiorais,
apoderados e outros que tais).
Em nome
da Riqueza das Nações,
do PIB,
do crescimento económico, do défice,
do choque tecnológico, 
da coesão social, da justiça redistributiva,
da pós-moderna governança dos Estados,
na senda imparável do progresso sustentado
(às arrecuas), 
aprofunda-se e alarga-se a douta directiva 
do Conselho de Ministros 
do Emprego e Assuntos Sociais da União Europeia,
que propõe que se eleve
de 48 para 60 ou 65 horas (ou mais),
o limite de semana laboral, 
e
decreta-se
a revogação
do Calendário Gregoriano.

*

A partir daqui e de agora,
e até ao fim do Mundo,
os dias passam a ter 25 horas; os meses, 33 dias;
os anos, 13 meses; e todos os anos serão bissextos.
Todos os trabalhadores
passarão a ser submetidos a trabalhos forçados.
O horário de trabalho universal
passará a ser de 25 horas por dia
(com três intervalos de 10 minutos cada,
para o mata-bicho, 
o jantar e a ceia).
Em prol dos elevados índices de produtividade,
deverá conceder-se uma única pausa diária 
de 60 segundos, para as necessidades fisiológicas.
(As grávidas, e outros trabalhadores,
 com incontinência urinária ou fecal,
 devidamente comprovadas,
poderão dividir o longo tempo de 60 segundos
por 3 vezes/dia.
O descanso diário obrigatório passará a ser
 na vigésima quinta hora.
Em situações de graves dificuldades económicas
ou de necessidade Superior do Mercado
o capataz de turno poderá coagir o trabalhador
a renunciar ao tempo de descanso obrigatório,
a troco de pagamento de uma hora extraordinária,
em espécie, que deverá ser, a título de exemplo,
uma medalha de cortiça
(a creditar na carteira de acções 
do seu Banco de Horas).
De acordo com as boas práticas da civilização judaico-cristã,
e se a norma não afectar
os Superiores Interesses do Mercado,
o descanso semanal continuará a ser
ao sétimo dia
(com os ajustes necessários para quem professe 
outra crença ou religião).
Excluem-se 
do descanso semanal os trabalhadores, sobretudo
 agnósticos e ateus.
Acabam todos os dias de férias, feriados e faltas.
Em louvor
do Sacrossanto Deus do Mercado,
e em nome dos Nossos Altissonantes e Supremos 
Umbigos,
convoca-se um Concílio Eclético
de todos os povos, nações, tribos
e religiões, mono e politeístas,
com os seus eminentes sábios, sacerdotes, teocratas, 
patriarcas, budas, jeovás, heresiarcas,
xamãs, orixás, mães, pais, filhas e filhos-de-santo, 
candomblés, e de outras fontes e terreiros;
e de todos os calendários
(hindus, hebraico, chinês, ab urbe condita,
rúnico, islâmico e persa),
para as emergentes sincronias e diacronias
com este imperioso
Choque de Civilização.
Em cumprimento
das novíssimas Regras imperativas,
e sob pena de acusação agravada de enriquecimento sem causa,
todos os trabalhadores detentores do capital-trabalho,
terão de colocar os seus Bancos de Horas 
na Bolsa de Valores dos Objectos Descartáveis
para cotação, e taxação fiscal de mais-valias e dos lucros 
acumulados
(em caso de compra, venda, fusão,
OPA hostil ou despedimento).
Se, 
por razões imponderáveis do Mercado,
como ganância, usura, roubo flagrante, 
desregulação,
 qualquer das grandes empresas cotadas
 nas Bolsas de Valores
entrar em falência,
obrigam-se 
os Estados
a capitalizar e solver a massa falida, com a distribuição 
dos encargos por todos os contribuintes.
A idade de reforma passará a ser aos 88 anos.
Os governos,
após Cimeira de Concertação Suprema,
poderão aprovar que os trabalhadores mais fiéis
a dar ao rabo atrás do donose reformem aos 99 anos.
Melhor, pelo seu elevado sentido de estar ao serviço 
dos Superiores Interesses do Mercado,
 no primeiro dia inútil da reforma,
serão agraciados com a comenda da Ordem de
qualquer coisa assim para estrumar os campos,
e quando morrerem, arcarão, 
tão-somente, com 98% das despesas do funeral, 
com pompa e circunstância, fanfarra e foguetes,
cabendo, em partes iguais,
ao Estado a que isto chegou e a um Fundo Fiduciário 
dos Nababos & Ociosos Permanentes,
o pagamento dos 2%, em falta.
Como medida cautelar,
atentos à 
Palavra do Senhor: 
Mateus, 24: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de 
uma agulhado que um rico entrar no Reino do Céu,
o Conselho de Administração
dos Detentores & Guardiães do Sistema,
aprova,
por maioria qualificada, 
criar, de raiz, um Laboratório-Hospital 
de Investigação Científica e Tecnológica,
do infinitamente grande ao infinitamente pequeno,
com os melhores cientistas, engenheiros e cirurgiões 
das almas, especialistas em Teologia, Ontologia 
e Metafísica, analistas da Transcendência
e anestesistas da Axiologia, da Ética, da Moral
e dos bons costumes,
para a descoberta, fabrico, comercialização 
e implantação, em tempo útil
(e a preço 
de extrema-unção),
no bloco operatório das Altas Consciências,
por métodos não invasivos,
a cada uma das almas privadas
da classe de Cima,
de uma nano-bula sacramental
de perdão  e remissão de todos os pecados
e que alargue o cu d'agulha para a vida eterna,
salvo-conduto prudencial de entrada triunfante
no Reino dos Céus.

*

Contra 
as Supra Potestades,
agora e na hora,

Pim!


*

Contra 
os Donos Disto Tudo,
e o mais que ditarão,

Pum!



Domingos da Mota