26.3.22

O ÁLIBI DO MAL

Separados por biombos de peluche,
sem nada para ler ou esperar, assimilamos
por fim o edital da derrota,
encaixamos o cansaço como um soco
na língua e entregamos ao desânimo
o migalho de madeira com que contávamos,
estupidamente, aquecer mais um Inverno.

Campanários sepultados em monturos,
a isto chegámos: a nulidade da razão
estrangulada, com sua voz de sino mole
a musicar a capoeira do instinto,
no abismo da natura devastada.

Entretanto, nas notícias, baterias de peritos
acolitam, iludidos, espectáculos de treva,
sugerem emoções, ensinam o rebanho
a construir o seu curral, suplicando
que a história passe longe do estouro.

O que resta é absurdo e penitente:
trocar a pilha ao relógio de sol,
acertá-lo pela hora da morte.
O álibi do mal é fazer-se desejar.


José Miguel Silva

ÚLTIMOS POEMAS, Averno, Lisboa, Junho de 2017

20.3.22

Gastão Cruz (1941-2022)

VISÃO DE HERBERTO HELDER
DA MORTE DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

cf. HH, Poemas Canhotos

António ramos rosa cuja morte
herberto viu sem a ela assistir
estava, segundo o testemunho obtido
através da visão vinda num frio
relâmpago, deitado numa cama
a dele, contra a parede

Há que dar meia volta com a cara
contra a parede para entrar na morte
totalmente
isso aprendeu herberto e compreendeu
ao ver-se nessa morte em que não estava
que se via num espelho

Gastão Cruz

EXISTÊNCIA, Assírio & Alvim, Setembro de 2017

5.3.22

Prolegómenos a um armistício pró-paz

Ir ao encontro do outro
Aproximar-se do outro
Cumprimentar o outro
Sentar-se à mesa com o outro
Olhar o outro nos olhos
Ver o outro
Reparar no outro
Falar com o outro
Conversar com o outro
Ouvir o outro
Escutar as razões do outro

Expor as suas razões
Debater as razões de ambos
Pôr-se no lugar do outro
Manter a cabeça fria
Congelar o ódio
Suspender os combates
Abrir corredores de segurança
Não acossar o outro
Não cercar o outro
Não intimidar o outro
Não humilhar o outro

Não massacrar o outro
Não aterrar o outro
Não devastar o outro
Tratar com o outro
Declarar tréguas
Respeitar o outro
Respeitar-se a si mesmo
Selar o armistício
Reconstruir pontes
Abrir caminhos para a paz



© Domingos da Mota

14.2.22

LITANIA

     É grande o deus da guerra, e é seu reino
     Um campo como milhares a apodrecer.

     Stephen Crane



E a guerra,
a besta imunda desenfreada,
feroz, mais atroz que mil invernos

queima e devasta e devora
os próprios filhos que afunda
no mais fundo dos infernos


© Domingos da Mota

Bolsa de Valores e Outros Poemas
, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010

1.1.22

FICÇÃO CIENTÍFICA

Se eu tivesse uma máquina do tempo,
Teria de ter cuidado,
Porque essa máquina,
Como todas as máquinas,
Teria um tempo
De duração,
E, um belo dia,
Deixar-me-ia
Parado
A meio de um desastre
Do futuro
Ou do passado.


José Pascoal

Branza, Editorial Minerva, Lisboa, Agosto de 2019