26.3.22

O ÁLIBI DO MAL

Separados por biombos de peluche,
sem nada para ler ou esperar, assimilamos
por fim o edital da derrota,
encaixamos o cansaço como um soco
na língua e entregamos ao desânimo
o migalho de madeira com que contávamos,
estupidamente, aquecer mais um Inverno.

Campanários sepultados em monturos,
a isto chegámos: a nulidade da razão
estrangulada, com sua voz de sino mole
a musicar a capoeira do instinto,
no abismo da natura devastada.

Entretanto, nas notícias, baterias de peritos
acolitam, iludidos, espectáculos de treva,
sugerem emoções, ensinam o rebanho
a construir o seu curral, suplicando
que a história passe longe do estouro.

O que resta é absurdo e penitente:
trocar a pilha ao relógio de sol,
acertá-lo pela hora da morte.
O álibi do mal é fazer-se desejar.


José Miguel Silva

ÚLTIMOS POEMAS, Averno, Lisboa, Junho de 2017

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