24.1.11

ELOGIO DA DIALÉCTICA

A injustiça avança hoje a passo firme.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são.
Nenhuma voz além da dos que mandam.
E em todos os mercados proclama a exploração: isto é apenas o
                                                                              meu começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.

Quem ainda está vivo nunca diga: nunca.
O que é seguro não é seguro.
As coisas não continuarão a ser como são.
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados.
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós.
De quem depende que ela acabe? Também de nós.
O que é esmagado, que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
E nunca será: ainda hoje.

Bertolt Brecht

Poemas, Selecção e estudo de Arnaldo Saraiva, Editorial  Presença, Lisboa

16.1.11

AS UNHAS

Sim, as unhas. Único órgão humano
que merece ser cantado no poema,
ele mesmo uma espécie de unha, laminar.
Garras ou pétalas,
precisam de corte e medida certa,
insistindo, depois do fim
da carne (que guarneceram toda uma vida),
em crescer para nada.
Últimas, mínimas transparências
fibrosas e amareladas
- pelos muitos cigarros. E
ainda se riem da morte,
já no caixão, sinal
de força sob a irremediável fraqueza humana.
Espigões quebradiços
com que ferimos o chumbo,
esse coração que Conrad disse um dia ser das trevas.

Luís Filipe Parrado

revista criatura, N.º 5 . OUTUBRO . 2010

10.1.11

CÃO

Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O'Neill

OBRAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Maio 2007

1.1.11

AS PUTAS DA AVENIDA

Eu vi gelar as putas da Avenida
ao griso de Janeiro e tive pena
do que elas chamam em jargão a vida
com um requebro triste de açucena

vi-as às duas e às três falando
como se fala antes de entrar em cena
o gesto já compondo à voz de mando
do director fatal que lhes ordena

essa pose de flor recém-cortada
que para as mais batidas não é nada
senão fingirem lírios da Lorena

mas a todas o griso ia aturdindo
e eu que do trabalho vinha vindo
calçando as luvas senti tanta pena

Fernando Assis Pacheco

Variações em Sousa, Posfácio por Gustavo Rubim, Angelus Novus, Coimbra
e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2004