31.12.24

Adília Lopes (1960-2024)

Tenho uma vida
a viver
e uma morte
a morrer


Adília Lopes



LE VITRAIL LA NUIT
A ÁRVORE CORTADA
, & etc, Lisboa, Fevereiro de 2006

21.12.24

Rua do Benformoso


Saiu à rua a feiura,
na rua do Benformoso,
com tiques de ditadura,
pondo em prática a leitura
do discurso capcioso

que repisa, sem razão,
o labéu contra o estrangeiro,
à sombra da percepção
de que será um papão
ou um vulgar candongueiro.

Como se fosse num gueto,
virado para a parede
quem na rua trabalhava,
passeava ou morava,
ou quem tinha mau aspecto,

na rua do Benformoso
adestrou-se a percepção
do poder que, ardiloso,
tem um discurso manhoso
de populista – malsão.


© Domingos da Mota


(Fotografia colhida na página do Facebook de Carlos Matos Gomes)

8.12.24

Avó

minha santíssima avó
com um vestido comprido justo
abotoado
com uma quantidade incontável
de botões
qual orquídea
qual arquipélago
qual constelação

sento-me no seu colo
e ela conta-me
o universo
de sexta
a domingo

compenetrado
sei tudo –
– sobre ela
a única coisa que oculta
é a sua origem
avó Maria apelido de solteira Balaban
Maria Calejada

nada diz
sobre o massacre
da Arménia –
o massacre dos Turcos

quer poupar-me
conceder-me vários anos de ilusão

sabe que chegará o dia
em que o descobrirei por mim mesmo
sem palavras maldições e lágrimas
a superfície
áspera
e a profundidade
da palavra

Zbigniew Herbert

POESIA QUASE TODA (1956-1998)
, Introdução de J. M. Coetzee, Selecção de J. M. Coetzee e Alissa Valles, Tradução do polaco e notas de Teresa Fernades Swiatkiewicz, Edição Cavalo de Ferro, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda., Lisboa, Outubro de 2024

[Vale a pena discutir]

Vale a pena discutir
por razões que a razão tece
com quem grita, manda vir
e a razão desconhece?

E travar-se de razões,
aumentar os decibéis
por meras opiniões
sobre dedos e anéis,

quem os mantém, quem os perde,
perdendo o pé e a razão
quando a disputa referve
e engrossa a discussão?


© Domingos da Mota