16.10.13

RESERVADO AO VENENO

Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos anos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras

António José Forte

Uma Faca nos Dentes, Prefácio de Herberto Helder, edição de Zetho Cunha Gonçalves, desenhos e fotografias de Aldina, Parceria A. M. Pereira, 2.ª edição aumentada, Lisboa 2003

5.10.13

Alquimias

     a Júlio Saraiva

Fosse o veneno poético,
claramente obscuro,
como vacina, antigénio,
fosse qual soneto duro

(mas para tal é preciso
ser poeta de mão cheia –
não fazer cócegas ao riso
quando o riso se incendeia).

Tomara que o veneno
criasse alguns anticorpos,
para avivar, pelo menos,
estes versos quase mortos.

Vou injectá-lo nas meias.
Se não chegar aos sapatos,
deixo-o no meio das teias –
será veneno dos ratos.

E quanto ao coro de vozes
e aos desertos ardentes,
confesso que vejo as nozes,
mas que me faltam os dentes.


© Domingos da Mota

(réplica ao poema «Oitava canhestra», de Júlio Saraiva)