30.11.10

Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter im livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

POEMAS DE FERNANDO PESSOA, Selecção, prefácio e posfácio de Eduardo Lourenço, Visão/JL, Fevereiro de 2006

28.11.10

RUA DOS CALDEIREIROS

Às vezes desces a Rua dos
Caldeireiros e perdes-te na

cidade velha. Vais re-
colhendo cheiros texturas

ruídos... Longe dos con-
domínios fechados este

é um lugar onde tudo é
substantivo. Até o verbo

foder. Quando chegas a
casa sentes-te como se

fosses um ladrão vulgar.

Jorge Sousa Braga

PORTO DE ABRIGO, Assírio & Alvim, Novembro de 2005

15.11.10

Manoel de Barros - "Anti-salmo por um desherói"

a boca na pedra o levara a cacto
a praça o relvava de passarinhos cantando
ele tinha o dom da árvore
ele assumia o peixe em sua solidão

seu amor o levara a pedra
estava estropiado de árvore e sol
estropiado até a pedra
até o canto
estropiado no seu melhor azul
procurava-se na palavra rebotalho
por cima do lábio era só lenda
comia o ínfimo com farinha
o chão viçava no olho
cada pássaro governava sua árvore

Deus ordenara nele a borra
o rosto e os livros com erva
andorinhas enferrujadas

Manoel de Barros

GRAMÁTICA EXPOSITIVA DO CHÃO, Editora Record, Rio de Janeiro * S. Paulo, 1999

14.11.10

[Nada fica de nada. Nada somos]

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos. Nada.

Ricardo Reis

POEMAS DE FERNADO PESSOA, Selecção, prefácio e posfácio de Eduardo Lourenço, Edição Visão/JL, Fevereiro de 2006

13.11.10

Almoços grátis

Há almoços grátis, sim está difícil
mas ninguém vai perguntar à entrada
o senhor foi convidado?
somos todos gente e gente honesta
sabemos escolher os talheres (não para os roubar, já não há
                                                             faqueiros de prata
nos almoços grátis)
sabemos alimentar conversa
sem nunca perguntar por que raio é que o almoço é grátis
é incompreensível.

Algures debaixo de um prato
esconde-se a nota de culpa
precisa de factura?
há alguém que não a encontra
geralmente é o anfitrião.

Mas nós emprestamos-lhe
o juro é por conta dele
cobrimos o prejuízo
para não irmos todos presos.

A nota de culpa por debaixo do prato
inclui gorjeta
no mínimo, equitativa.

Sérgio Godinho

O SANGUE POR UM FIO, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro de 2009

8.11.10

PRANTO PELO DIA DE HOJE

Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas

Sophia de Mello Breyner

GRADES, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1970

3.11.10

O ANO DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

(...)

A desgraça de um país mede-se na distância que vai das instâncias do poder
à esperança dos seus habitantes, o deserto especializa-se quando a crise
se amplia, chegam os usurpadores e o equilíbrio das emoções descontrola-se,
a ciência columbófila ressente-se por esse condicionamento,
eiva-se de sinecuras e compadrios,
especializa-se em apreciações,
distingue-se entre os méritos e os desméritos
por simonia,
favorecimentos,
invejas comezinhas

(...)

Amadeu Baptista

O ANO DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO, &etc, Setembro de  2010

1.11.10

FAMÍLIA VENDE TUDO

família vende tudo
um avô com muito uso
um limoeiro
um cachorro cego de um olho
família vende tudo
por bem pouco dinheiro
um sofá de três lugares
três molduras circulares
família vende tudo
um pai engravatado
depois desempregado
e uma mãe cada vez mais gorda
do seu lado
família vende tudo
um número de telefone
tantas vezes cortado
um carrinho de supermercado
família vende tudo
uma empregada batista
uma prima surrealista
uma ascendência italiana & golpista
família vende tudo
trinta carcaças de peru (do natal)
e a fitinha que amarraram no pé do júnior
no hospital
família vende tudo
as crianças se formaram
o pai faliu
deve grana para o banco do brasil
vai ser uma grande desova
a casa era do avô
mas o avô tá com o pé na cova
família vende tudo
então já viu
no fim dá quinhentos contos
pra cada um
o júnior vai reformar a piscina
o pai vai abrir um negócio escuso
e pagar a vila alpina
pro seu pai com muito uso
família vende tudo
preços abaixo do mercado

Angélica Freitas

A poesia andando: treze poetas no Brasil, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2008